segunda-feira, 5 de agosto de 2013

GALERIA DO ROCK PRESERVAR SEU ESPIRITO


Preservar o espírito da mais completa tradução, eis o desafio

W. Tede Silva

            Um dia debatíamos, em um bar do Bixiga, eu e um intelectual de outro Estado brasileiro, sobre qual de fato seria a mais completa tradução da maior cidade da América do Sul. Ele objetava que não considerava  como tal a cantora de pop rock nacional citada em uma antiga música brasileira.  Preferia ver eternamente São Paulo resumida na figura e na obra de Adoniram Barbosa.
            No filme Jailhouse Rock, um ex-presidiário transformado em cantor popular, interpretado por Elvis Presley, responde ao colega de cadeia que o incentivara a investir na música e que agora cobrava também uma oportunidade para ganhar a vida no meio : « a música é um negócio que muda a cada seis meses, voce ficou mais tempo preso do que eu, perdeu o bonde »...
            Assim é perda de tempo querer traduzir uma cidade em um personagem qualquer, ainda mais de música, cada geração possui diversas musicalidades e cada uma enterra a da geração anterior para criar a sua própria. Sobram os clássicos, que somente podem ser consagrados depois de décadas de resistência e pela adoção de novas gerações.      Ando pela cidade francesa de Joigny e seus mais de mil anos de vida me fazem refletir ainda mais sobre o tempo e suas relatividades. Entro na loja do departamento de turismo da cidade de cerca de dez mil habitantes. Tem mais diversidade de folhetos, livretos, cartazes, boletins, mapas e informes, do que grandes cidades brasileiras. E sua riqueza de arquitetura, que apresenta em um mesmo sítio desde construções medievais até o art noveau do início do século XX, me lembra uma frase que ouvi  do então senador Darcy Ribeiro, em Brasília : « Oscar Niemeyer  será o único brasileiro de nossa geração lembrado daqui mil anos ». O tempo destrói quase tudo mas a arquitetura das urbes é o que mais resiste.
            Entre um mergulho e outro na piscina pública cuja arquitetura lembra justamente Le Corbusier e o nosso Niemeyer, reflito que algumas cidades parecem colônias de férias permanentes, enquanto outras lembram filmes de terror eterno, como aquelas que vivem em guerra ou habituadas à um fatalismo de carências e violências.
            E para refrescar mais um pouco no calor do verão francês, lembrei então da charada que eu e o amigo tentávamos há anos decifrar sobre a nossa maior cidade da América do Sul. E viajo mentalmente então até a Galeria do Rock, um prédio com alma própria, na selva de concreto onde as almas se perdem naquela luta desenfreada, quase sempre sem sentido, feroz e cruel, para sobreviver e levar a vida.
            A Galeria do Rock não tem mil anos, como Joigny, mas com certeza tem mais vocação para chegar lá do que nossas diversas gerações de antes ou que vierem depois. O prédio da Galeria, também um exemplar inspirado na art nouveau e suas curvas, felizmente já foi tombado pelo órgão responsável de São Paulo. Mas quando visitamos uma « pequena » cidade que preserva com tanto orgulho sua história de mil anos,  pensamos também no que deve ser feito para que não apenas um prédio e suas linhas arquitetônicas continuem vivas através do tempo, mas também sua história e seu espírito.
            O tempo passa, lá se foram mais de dez anos da descoberta do aforismo :  « Paris tem Torre Eiffel, New York tem Estátua da Liberdade, Brasília tem palácios, o Rio de Janeiro tem muitas praias.  E São Paulo tem a Galeria do Rock ».  Mais do que um prédio, um conjunto de pessoas, comerciantes, trabalhadores, produtores, artistas, uma identidade, um espírito, uma saga, um símbolo ?  E lembro outro aforisma, agora do grego Hipócrates : "A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil".  A Galeria do Rock. Uma obra de arte coletiva e viva. A mais completa tradução da cidade de São Paulo. Nem Darcy Ribeiro seria contra.

(W. Tede Silva é cineasta e músico, radicado em Paris, FR)