Preservar
o espírito da mais completa tradução, eis o desafio
W.
Tede Silva
Um
dia debatíamos, em um bar do Bixiga, eu e um intelectual de outro Estado
brasileiro, sobre qual de fato seria a mais completa tradução da maior cidade
da América do Sul. Ele objetava que não considerava como tal a cantora de pop rock nacional
citada em uma antiga música
brasileira. Preferia ver eternamente São
Paulo resumida na figura e na obra de Adoniram Barbosa.
No
filme Jailhouse Rock, um ex-presidiário transformado em cantor popular, interpretado
por Elvis Presley, responde ao colega de cadeia que o incentivara a investir na
música e que agora cobrava
também uma oportunidade para ganhar a vida no meio : « a música é um negócio que muda a cada seis meses, voce
ficou mais tempo preso do que eu, perdeu o bonde »...
Assim
é perda de tempo querer traduzir uma cidade em um personagem qualquer, ainda
mais de música, cada geração
possui diversas musicalidades e cada uma enterra a da geração anterior para
criar a sua própria. Sobram os clássicos, que
somente podem ser consagrados depois de décadas de resistência e pela adoção de
novas gerações. Ando pela cidade
francesa de Joigny e seus mais de mil anos de vida me fazem refletir ainda mais
sobre o tempo e suas relatividades. Entro na loja do departamento de turismo da
cidade de cerca de dez mil habitantes. Tem mais diversidade de folhetos,
livretos, cartazes, boletins, mapas e informes, do que grandes cidades
brasileiras. E sua riqueza de arquitetura, que apresenta em um mesmo sítio
desde construções medievais até o art
noveau do início do século XX, me lembra uma frase que ouvi do então senador Darcy Ribeiro, em Brasília :
« Oscar Niemeyer será o único brasileiro de nossa geração
lembrado daqui mil anos ». O tempo destrói quase tudo mas a
arquitetura das urbes é o que mais resiste.
Entre
um mergulho e outro na piscina pública
cuja arquitetura lembra justamente Le Corbusier e o nosso Niemeyer, reflito que
algumas cidades parecem colônias de férias permanentes, enquanto outras lembram
filmes de terror eterno, como aquelas que vivem em guerra ou habituadas à um
fatalismo de carências e violências.
E
para refrescar mais um pouco no calor do verão francês, lembrei então da
charada que eu e o amigo tentávamos há anos decifrar sobre a nossa maior cidade da
América do Sul. E viajo mentalmente então até a Galeria do Rock, um prédio com
alma própria, na selva de concreto onde as almas se perdem naquela luta
desenfreada, quase sempre sem sentido, feroz e cruel, para sobreviver e levar a
vida.
A
Galeria do Rock não tem mil anos, como Joigny, mas com certeza tem mais vocação
para chegar lá do que nossas diversas gerações
de antes ou que vierem depois. O prédio da Galeria, também um exemplar
inspirado na art nouveau e suas
curvas, felizmente já foi tombado pelo órgão
responsável de São Paulo. Mas quando visitamos
uma « pequena » cidade que preserva com tanto orgulho sua história de
mil anos, pensamos também no que deve
ser feito para que não apenas um prédio e suas linhas arquitetônicas continuem
vivas através do tempo, mas também sua história e seu espírito.
O
tempo passa, lá se foram mais de dez anos da
descoberta do aforismo : « Paris tem Torre Eiffel, New York tem
Estátua da Liberdade, Brasília tem palácios, o Rio de Janeiro tem muitas praias. E São Paulo tem a Galeria do Rock ». Mais do que um prédio, um conjunto de
pessoas, comerciantes, trabalhadores, produtores, artistas, uma identidade, um
espírito, uma saga, um símbolo ? E
lembro outro aforisma, agora do grego Hipócrates :
"A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência
enganosa, o julgamento difícil". A
Galeria do Rock. Uma obra de arte coletiva e viva. A mais completa tradução da
cidade de São Paulo. Nem Darcy Ribeiro seria contra.
(W.
Tede Silva é cineasta e músico, radicado em Paris, FR)